Criador do conceito de “ócio criativo”, o sociólogo italiano – que morreu no dia 9 – via o Brasil como alternativa ao modelo de sociedade europeu e estadunidense
Por Luiz Prado
A perda do sociólogo italiano Domenico De Masi (1938-2023), morto no sábado passado, dia 9, em Roma, recolocou nos principais jornais e portais do País o tema do ócio criativo, assunto de seu best-seller publicado em 1995. Para De Masi, tratava-se da ideia de que o tempo livre não é algo negativo, mas fundamental na sociedade contemporânea. A criatividade e a capacidade de nos situarmos no mundo globalizado estariam diretamente associadas a ele, segundo o autor.
“Domenico é muito conhecido na sociologia por ser aquele que pensou de maneira mais criativa os dilemas das chamadas sociedades pós-industriais”, explica o professor Ruy Braga, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. Conforme conta Braga, a partir do final dos anos 1970 foi diagnosticado que as sociedades industriais – não apenas na Europa e Estados Unidos, mas também em países como Brasil, Argentina e Coreia do Sul – estariam passando por uma transição rumo a outro estilo de organização econômica. O modelo centrado na fábrica estaria dando lugar a uma dinâmica baseada no conhecimento.
“A economia estaria se tornando cada vez menos dependente do trabalho repetitivo e alienado e cada vez mais dependente do trabalho criativo”, indica Braga. Nessa fase, flexibilização, capacidade adaptativa, gestão do conhecimento e criatividade se tornariam atributos mais salientes no mundo do trabalho. Nesse cenário, o conceito de trabalho criativo desenvolvido por De Masi representou uma síntese e operacionalização desse diagnóstico, aponta o docente.
De Masi dizia que o ócio criativo é o resultado de três ações: trabalho, estudo e lazer. Ou seja, não se trata de abandonar tarefas produtivas ou abraçar a procrastinação, mas equilibrar criação de riqueza, acúmulo de conhecimento e produção de alegria. “É pelo trabalho que produzimos riqueza, pelo estudo que produzimos conhecimento e pela diversão que produzimos alegria. Ócio criativo é a união desses três fatores”, escreveu em O Ócio Criativo.
Segundo Braga, a ideia de ócio criativo indica quais seriam as bases para que o conhecimento, nessa nova etapa pós-industrial das economias, pudesse florescer. “Domenico apresenta uma crítica à dimensão alienante do trabalho, identificada com a indústria e o trabalho subalternizado, prescrito e rotinizado, controlado principalmente pelas máquinas. Em uma economia de transição, essa heteronomia perde o sentido e é preciso entender quais as fontes de criatividade ligadas a esse novo período.”
Para De Masi, conta o professor, as pessoas seriam mais felizes e inseridas nessa economia de transição se tivessem mais tempo livre. A chave seria tempo para descobrir novas áreas de interesse, se envolver com outras formas de conhecimento ligadas à educação e interagir com o mundo e com outras pessoas sem a necessidade de uma relação instrumental. “O conceito de ócio criativo é menos a ideia de não fazer nada e, sim, fazer coisas desinteressadas, que não têm uma razão instrumental por trás, ligada à ideia de lucro, de produção e de capital”, explica Braga.
As ideias do sociólogo demonstraram sua atualidade durante a pandemia da covid-19 e a implementação do teletrabalho em muitos setores produtivos, decorrência da necessidade de isolamento social. Em vídeo divulgado pelo portal G1 por ocasião da sua morte, De Masi falou a respeito do aumento de produtividade trazido pelo home office e da oportunidade desse movimento para o ócio criativo. De acordo com o intelectual, pesquisas indicam que o trabalho a distância aumenta a produtividade em 15% a 20%, o que significa redução de uma jornada de oito horas de trabalho para sete horas.
“Aqueles que, por teletrabalho, estenderam seu dia de trabalho em vez de encurtá-lo, são neuróticos que não podem viver sem trabalhar”, disse o sociólogo na entrevista. “Precisam de ajuda para se desintoxicar. O teletrabalho permite combinar trabalho, estudo e lazer: ou seja, permite o ócio criativo.”
Domenico De Masi nasceu no dia 1o de fevereiro de 1938 em Rotello, uma comuna que conta atualmente com pouco mais de mil habitantes, situada na província de Campobasso, na região do Molise, no sul da Itália. Graduou-se em Direito na Universidade de Perugia e especializou-se em sociologia do trabalho em Paris. Iniciou a carreira docente em 1961, como assistente na Cátedra de Sociologia da Universidade de Nápoles Frederico II, tendo lecionado também na Universidade de Sassari, na Universidade de Nápoles – L’Orientale e na Universidade de Roma La Sapienza.
A sociologia do trabalho e das organizações foi sua principal área de atuação, na qual escreveu, entre outros assuntos, sobre mercado de trabalho, estrutura organizacional, estratégias empresariais, motivações individuais e teletrabalho. Suas ações e ideias também tiveram repercussões na vida política italiana. Um dos exemplos mais recentes foi o programa italiano de renda básica de cidadania, implementado em 2019 naquele país durante o governo de Giuseppe Conte, ex-primeiro ministro e líder do Movimento 5 estrelas, partido surgido em 2009 que bebeu muito das ideias do sociólogo.
As atenções do pensador também estiveram voltadas para o Brasil, cuja análise ocupa parte importante do livro O Futuro Chegou, publicado no Brasil em 2014. Na obra, De Masi discute como a experiência brasileira pode ser uma alternativa aos modelos europeu e estadunidense de sociedade. Em entrevista para a Folha de S.Paulo naquele ano e recuperada agora pelo jornal, o intelectual afirmou que o País possui um “pé atrás” com a idealização da eficiência e da produtividade, o que não é um atributo ruim.
“Os americanos espalharam pelo mundo a cultura do manager”, disse o sociólogo à Folha. “A Itália se americanizou, por exemplo. Até na cultura. Hoje, lá, só há rock e cinema americano. Vocês têm bossa nova, têm novela.” O diferencial do Brasil envolveria, em sua leitura, a influência indígena. “Os índios não trabalhavam. Não era necessário. Tudo estava na natureza. Não precisavam nem se vestir, porque o clima era bom. O brasileiro herdou do índio esse senso de ócio.”
O Estado de S. Paulo também recordou a atenção que Domenico De Masi dispensou ao Brasil. O canal do jornal na plataforma Youtube compartilhou um vídeo recente do sociólogo, divulgado no evento Lide, sediado em Milão. Nele, o intelectual traçou considerações a respeito da relação entre Brasil e Itália e elogiou a diversidade brasileira, que teria conferido ao povo “um frescor que o torna único e pacífico em um tabuleiro mundial atravessado por insensatas prepotências”.
Mas seus vínculos com o Brasil são ainda mais estreitos. Em 2010, De Masi tornou-se Cidadão Honorário do Rio de Janeiro. Além disso, era amigo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a quem visitou durante a prisão na Superintendência da Polícia Federal, em Curitiba (PR). Em viagem à Europa, Lula reencontrou De Masi, em junho deste ano. Nas redes sociais, o presidente lamentou a morte do amigo e destacou suas qualidades.
“Intelectual incansável e homem público apaixonado, sempre foi um defensor das causas sociais, do avanço das conquistas humanas e de um mundo mais justo e solidário”, publicou Lula. “De Masi sempre foi muito atento e carinhoso com o Brasil, sempre visitando o País e sem nenhum medo de se posicionar, mesmo nos momentos mais difíceis.”
De Masi deixou a esposa, Susi del Santo, duas filhas, quatro netos e uma obra que ainda tem muito a dizer.