Adrian Gurza Lavalle e Humberto Dantas comentam e explicam os motivos pelos quais os jovens estão mais propensos a aceitar regimes autoritários quando comparados aos mais velhos
Por Julia Galvao*
Uma recente pesquisa realizada pela ONG Open Society Foundations em 30 países revelou que, ao redor do mundo, os indivíduos entre 18 e 35 anos estão mais propensos a aceitarem regimes autoritários do que pessoas mais velhas. Apesar da informação, o relatório também apontou que 86% das pessoas que participaram do estudo ainda afirmam ter o desejo de viver em uma democracia. Outro ponto importante avaliado pela pesquisa foi o fato de que 71% dos entrevistados afirmaram que os direitos humanos representam valores nos quais acreditam. Etiópia, Turquia, China, Índia e Egito são os cinco países que apresentaram o maior número de indivíduos que acreditam ser importante viver em um governo democrático.
Para além dessas questões, cerca de 70% dos participantes da pesquisa revelaram estar ansiosos sobre como as mudanças climáticas podem afetar suas vidas, e a corrupção segue sendo vista como um dos maiores problemas de diferentes nações. Adrian Gurza Lavalle, professor do Departamento de Ciência Política da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP e pesquisador do Centro de Estudos da Metrópole (CEM), explica que é complexo encontrar um consenso no debate internacional acerca dos motivos que poderiam explicar o aumento da descrença da democracia.
“Sabemos que esse é um fenômeno global que está associado a um conjunto de fenômenos que têm sido nomeados como “ascensão da extrema-direita”, “emergência dos populismos de extrema-direita”, “regressão democrática” e outras denominações semelhantes que buscam entender esse fenômeno, que ainda aguarda uma explicação convincente do ponto de vista de sua causas”, explica o especialista.
Causas
Para a compreensão dos motivos que colaboraram com a formação desse cenário, é importante a avaliação de que esse fenômeno, apesar de ocorrer de forma global, apresenta-se de forma especializada em cada um dos países. Lavalle expõe que existem três grandes fatores que podem simplificar essa questão, o primeiro refere-se às questões socioeconômicas, o segundo às questões sociotécnicas e o terceiro aos agentes que estão envolvidos nesse processo.
“As questões socioeconômicas tratam sobre o processo de precarização do mundo do trabalho e o crescimento da desigualdade no mundo. Isso é explicado como um efeito de mais de 40 anos de políticas daquilo que se convencionou denominar de neoliberalismo”, comenta o professor. Assim, a partir disso, teria ocorrido um encadeamento intenso de desregulamentação de mercado, concentração de renda e informalização em contextos em que essa situação não era a norma, mas a exceção.
É possível avaliar, dessa forma, que é dentro dos principais segmentos afetados por essas ações que essa descrença obteve um aumento, enquanto, no mesmo período, os setores de extrema-direita e de natureza nacionalista cresciam. O segundo aspecto associado a esse debate diz respeito às condições sociotécnicas que englobam as redes sociais e o que elas permitem do ponto de vista da comunicação direta entre emissores e receptores. “As redes sociais permitem produzir redes homofílicas, isto é, redes de pessoas que possuem ideias muito semelhantes. Assim, essas redes funcionam como câmaras que retroalimentam certas compreensões de mundo”, avalia o pesquisador.
Outro mecanismo que é utilizado por esse sistema é a simplificação e o barateamento do acesso a grupos que necessitavam de um conjunto de filtros na mídia tradicional — assim, atualmente não há, necessariamente, a mediação de certos conteúdos políticos. “As mais estranhas informações sobre o mundo se tornaram passíveis de circulação, assim, o uso sistemático disso com propósitos políticos pode ser apontado como um dos fatores que colaboraram com a formação dessa descrença”, aponta Lavalle. Por fim, ele diz que esse fenômeno não acontece de maneira espontânea, dessa forma, a ação dos agentes colabora para alimentar essa descrença. Isso acontece, pois existem alguns atores que estariam interessados ora em promover essa descrença, ora em se aproveitar dela.
Humberto Dantas, doutor em ciência política pela Universidade de São Paulo e diretor do Movimento Voto Consciente, adiciona também que parte expressiva da sociedade, em especial a parcela mais jovem, ainda apresenta uma dificuldade em separar frustrações pessoais de desafios de ordem pública. “Isso, inclusive, é o que faz muitas pessoas de mais idade defenderem ditaduras até hoje por uma lógica saudosista a um tempo que, a despeito da inexistência de democracia no País, as pessoas julgarem que estavam melhores”, comenta.
Outro aspecto levantado pelo pesquisador é a falta de compreensão acerca da diferença entre liberdade de expressão e os limites associados aos valores sobre os quais é desejado construir a nossa sociedade. “Os números mais recentes de ataque à democracia podem trazer para uma parte da sociedade a ideia de que é normal e democrático promover esse tipo de ataque. Não é”, avalia Dantas.
Consequências
O aumento dessa descrença implica em diferentes consequências, entre elas, a mais clara parece ser a ascensão da extrema-direita, com o avanço da intolerância em diferentes campos sociais. “Há um processo de enrarecimento do que poderíamos chamar de tolerância liberal na esfera pública, que tem promovido políticas públicas de restrição de direitos”, afirma o professor Lavalle.
Juntamente com isso, observa-se a restrição da capacidade de ação da sociedade civil e a redução do poder de liberdade de imprensa. Além disso, o especialista avalia que esse é um processo cíclico, já que o avanço desses efeitos faz-se por meio dos atores políticos que se alimentam da projeção desses discursos de ódio na esfera pública. “Essa descrença é simultaneamente causa e efeito cultivado por aqueles que dela se beneficiam”, complementa.
Gerações
O professor explica também que há um componente geracional nesse debate, que preocupa diferentes Estados nacionais — principalmente aqueles em que há uma forte presença de diásporas. Nos países europeus, por exemplo, as diásporas e a presença de comunidades imigrantes estão diretamente associadas à presença de grupos jovens com precárias condições de inserção, que, nesse debate, apresentam-se como importante objeto de radicalização.
No Brasil, a clivagem geracional também é pensada nesse debate, assim, é possível observar uma tendência de radicalização entre os jovens que frequentam as igrejas evangélicas, por exemplo. O especialista destaca, no entanto, que esse campo apresenta suas diversidades e pluralidades, sendo necessário evitar simplificações para tratar desses setores.
Também no campo nacional é possível observar que a clivagem geracional está associada a aspectos socioeconômicos. Dessa forma, observa-se que os jovens se encontram em situações mais precárias do ponto de vista de suas possibilidades de inserção, principalmente com o crescimento do processo de “uberização” do trabalho. A inserção permanente no mercado de trabalho, por exemplo, tornou-se uma exceção à regra em conjunto a processos como a conquista da moradia própria.
“Você tem um conjunto de gerações para as quais atingir, do ponto de vista socioeconômico, a posição que os pais atingiram se mostra profundamente improvável”, pontua Lavalle. Esse fator auxiliaria na formação de um processo de vulnerabilidade que torna esses sujeitos mais passíveis a um sentimento de radicalização. Apesar dessa condição ser observada, ainda é difícil para os pesquisadores definirem objetivamente outros motivos que poderiam colaborar com a construção desse cenário.
Caminhos
Apesar da complexidade e das ramificações que envolvem esse tema, alguns caminhos podem ser tomados para a promoção do fortalecimento da confiança na democracia. Entre eles, Adrian Gurza Lavalle cita o financiamento de agências que realizam pesquisas com os jovens que avaliam o tratamento informacional sobre diferentes percepções do mundo. Além disso, o incentivo à participação política em moldes democráticos é essencial, juntamente com a devida penalização contra todos aqueles que atentam contra as instituições democráticas. “Isso teria como objetivo combater a naturalização de certos discursos e condutas como se eles fossem triviais”, analisa Humberto Dantas.
Diferentes medidas também estão sendo implementadas nas esferas municipal, estadual e federal para garantir a maior participação populacional. Dantas também complementa a questão avaliando que o adensamento de cultura e mudanças significativas nos padrões de educação da sociedade devem ser realizadas para uma melhoria dessa problemática, sendo também necessário questionar como determinados temas — como a tentativa de golpe observada no dia 8 de janeiro — serão levados às escolas, às salas de aula e aos debates.
*Sob supervisão de Paulo Capuzzo
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