No mesmo momento em que se discute a curricularização da extensão na USP, os estudantes estão mobilizados em defesa de pautas pertinentes associadas ao aperfeiçoamento do programa de permanência estudantil e à melhoria da qualidade dos cursos de graduação por meio da contratação de mais professores. Infelizmente, a coerção tem sido usada como mote de convencimento, e a remoção dos obstáculos e o retorno à normalidade parecem distantes, a despeito das contínuas e detalhadas explicações das autoridades universitárias: 879 novos docentes estão sendo contratados, alguns em regime de urgência, e os aportes para a permanência estudantil são os maiores já destinados para tal fim (quase R$ 200 milhões/ano). Esse cenário pode ser modificado? Não, pois o quadro docente será recomposto aos níveis de 2014, os concursos devem seguir uma liturgia administrativa que é lenta (oito meses são decorridos desde a liberação da vaga até a admissão de um docente) e não há folga orçamentária para investimentos ainda maiores no programa de permanência.
As atividades da greve mobilizam somente uns poucos estudantes, os grevistas continuam inflexíveis e os prédios permanecem esvaziados. Pautas difusas, confrontos às vezes violentos e obstruções físicas dificultam o diálogo. Para os menos avisados, os reais motivos dos protestos não estão claros. Os estudantes demandam uma universidade mais justa e inclusiva, mas já há cotas em todas as vertentes de acesso à Universidade, inclusive para docentes e funcionários, e criou-se uma Pró-Reitoria específica para lidar com inclusão e pertencimento (PRIP), órgão pioneiro no Brasil.
O ambiente universitário é aquele em que a comunidade se reúne de forma civilizada para, com liberdade e autonomia, construir conhecimentos nas áreas das artes e ciências e formar recursos humanos altamente qualificados. O Estado custeia este espaço porque acredita que nele se produzem a tecnologia e o conhecimento que impulsionam o desenvolvimento econômico, científico, cultural e artístico, com consequências positivas para todo o tecido social. Neste ambiente diverso, atritos são inevitáveis. Por exemplo, há embates entre as ciências duras e as humanas, mas eles são resolvidos à custa de conversas, diálogos e reuniões. Decisões de outras naturezas também precisam ser tomadas na esfera administrativa e o estabelecimento de consensos nem sempre é tarefa trivial. Os resultados podem não agradar a todos os envolvidos, mas em um sistema democrático e altamente escolarizado, como as instituições de ensino superior, não se espera que o descontentamento gere conflitos insuperáveis. Estes são deletérios, pois conduzem a um esgotamento na relação entre as pessoas e à supressão da liberdade de pensamento e expressão. Em casos mais extremos, ao inalienável direito de ir e vir.
A importância da universidade pública para a sociedade é apenas marginal, pois o diálogo tem sido fragmentado e esporádico. Parcela significativa da população acredita que a instituição não faz parte de seu horizonte, reforçando o enganoso conceito da “torre de marfim”. Se não bastasse a irrelevância da universidade pública para a comunidade, políticos mais radicais empreendem seguidos esforços para desvalorizar a instituição. Por exemplo, elitista, ineficiente e dispendiosa são adjetivos usualmente empregados na tentativa de desqualificar a USP. Não sem surpresa, a exposição da universidade por conta de paralisações, como a atual, leva políticos oportunistas e setores da imprensa a defenderem a cobrança de mensalidades para sanar problemas financeiros. Obviamente, tal proposta apenas demonstra o desconhecimento de que educação é um bem a serviço da coletividade e revela como o conceito de “coisa pública” está se descolando do imaginário de algumas pessoas.
A autonomia outorgada à USP é essencial para ela manter um relacionamento com a cultura dissociado das pressões imediatistas do consumo e do mercado, de tal forma que a pesquisa básica possa ser conduzida com total liberdade. O distanciamento é importante para conferir independência à instituição, mas ela deve também manter algum tipo de contato com a sociedade que lhe permita aprimorar o ensino e a pesquisa. Esta interação com o meio externo é denominada extensão universitária, que, ao ser agora curricularizada, vai proporcionar aos estudantes uma oportunidade única de aprendizado diferenciado e aplicado. Ocorre que esta interação dialógica, esperada na relação aluno/professor, requer confiança e respeito para que seja profícua. Os piquetes, entretanto, representam a imposição à força e tem uma conotação antidemocrática. Da forma como têm sido conduzidos, significam a negação da própria universidade.
Neste movimento de paralisação das aulas, os estudantes levantaram pautas relevantes e demonstraram elogiável capacidade de mobilização. Não por acaso, tal atitude crítica e contestadora obrigou a gestão universitária a antecipar e acelerar o processo de contratação de docentes, reconhecendo e valorizando as demandas. A manutenção da greve, todavia, traz consequências, e entre elas incluem-se o aumento da evasão e o prejuízo na aprendizagem, especialmente dos estudantes com lacunas na formação pré-universitária. À luz desse cenário, talvez seja o caso de o movimento estudantil agir com cautela, compreensão e senso de oportunidade, sem baixar a vigília, e considerar a possibilidade de retomada da rotina universitária.
Alunos formados na USP possuem sólida formação intelectual e são preparados para exercer a reflexão racional com a qual podem transformar conscientemente a sociedade. O pensamento crítico, tão desejado e exercitado em nossa instituição, exige a autocrítica como contrapartida, e é na construção coletiva de valores que a função de uma universidade pública se apresenta como essencial e insubstituível. Esta tarefa demanda diálogos, e não rupturas. Ameaças circundam as instituições públicas a todo instante e chegará o momento em que docentes, alunos e funcionários vão precisar se unir para evitar dias ainda piores.
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