Formado em Letras pela USP, Fabrício Corsaletti conquistou o Prêmio Jabuti com o livro de poemas “Engenheiro Fantasma”
Por Luiz Prado
Frente a um mundo de discursos contraditórios, agressivos, propagandísticos e opressivos, o desejo de sublimar o eu, fisica ou metaforicamente, é sedutor. As possibilidades de “dar o fora daqui”, entretanto, não são para qualquer um. Sumir do mapa e reaparecer para a própria paz interior, despojado da neurose acumulada nos ossos ao longo dos anos, é uma habilidade dos artistas. Como Bob Dylan.
Exilado no anonimato de Buenos Aires, Dylan teria encontrado nas calles porteñas matéria nova para sua lírica, exposta em versos serenos formatados na rigidez do soneto e apresentados com o leve título 200 Sonnets. Um livro de sonhos para desejos oníricos. Porque só conhecemos as estrofes de Dylan graças ao desassossego noturno de Fabrício Corsaletti, que despertou dessa fantasia – um sonho que realmente teve – para materializar 56 desses sonetos em Engenheiro Fantasma, aclamado como Livro do Ano e também Melhor Livro de Poesia no 65o Prêmio Jabuti, promovido pela Câmara Brasileira do Livro (CBL). A entrega do prêmio ocorreu no dia 5 passado, no Theatro Municipal de São Paulo.
Apresentada ao leitor no prólogo, a moldura ficcional da obra é exercício lúdico mobilizado por Corsaletti para criar uma nova voz em sua poesia. Mas trata-se também, garante o autor, de uma realidade que produziu uma experiência inédita para seu fazer artístico e resultou em “puro gozo criativo”. Um sonho do qual se desperta para o trabalho diante do computador: palavras, versos, estrofes e sonetos viajando do subconsciente para as pontas dos dedos batendo no teclado.
Misto de inspiração e suor? “Inspiração é uma palavra que dá margem a muito papo furado, mas, por falta de outra melhor, eu a aceito”, diz Corsaletti. “Claro que não no sentido de receber de fora o auxílio luxuoso das musas. Tem mais a ver com um certo estado mental propício à escrita, no qual tudo parece estar mais concentrado e nítido, como quando olhamos para o rosto da pessoa por quem estamos apaixonados.”
O que significa trabalho árduo para ativar tal estado. Corsaletti escreve quase todos os dias, independentemente de como está sua cabeça. “Tenho quilos e quilos de textos inacabados no meu computador. Então todo dia eu trabalho um pouco em algum deles. Mas às vezes alguns poemas acontecem. Vêm fácil. Como se tivessem se formado sozinhos no meu inconsciente. Mas não acho que se eu parasse de escrever todos os dias isso continuaria acontecendo. Sinto que uma coisa depende da outra, fazem parte de um mesmo e longo e tortuoso processo. A maior parte do tempo o que faço é trabalhar pesado, com muito suor, dor de cabeça, dor nos braços, no pescoço, muita irritação, algum prazer, ilusão, desilusão, água, café e paciência.”
Exceção para os poemas de Engenheiro Fantasma? Graças ao sonho narrado no prólogo, o autor conta que entrou em um estado mental “aberto, poroso, sereno e decidido”. “Tudo o que eu pensava em escrever, escrevia. Reescrevi poucos versos do livro, uns 40 ou 50 dos quase 900, e publiquei os 56 sonetos que escrevi, o que é incomum, pois em geral, na hora de fechar um livro, jogo fora uns dois terços do material. Não estou querendo mistificar nada – além do quê, tanto faz escrever um livro em nove dias ou em nove anos, o importante é que fique bom –, mas essa é a verdade, e eu não quero barateá-la. Tive nove dias de puro gozo criativo. Se acreditasse em deuses, eu os agradeceria. Não espero que isso aconteça de novo. Aconteceu. Acabou. Eu fiz o que tinha que fazer. Agora vou fazer outras coisas.”
“Escrever se aprende escrevendo, não discutindo teoria”
Paulista nascido em Santo Anastácio, em 1978, Corsaletti vive na capital desde 1997, ano em que ingressou no curso de Letras da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. Concluiu a graduação em 2001, e ao lado dos amigos e das amigas que fez por lá se recorda também de ter assistido a aulas excelentes nesse período, responsáveis por sacudir ideias velhas e mudar coisas de lugar. “Gostei especialmente dos cursos que fiz com Alcides Villaça, Ivone Daré Rabello e Wagner Camilo e dos cursos de Literatura Russa e de alguns outros. As aulas do Villaça me marcaram profundamente. Aquela capacidade que ele tem de ir fundo no texto me espantava demais, ainda espanta. Às vezes, quando estou lendo um conto ou um poema, me pergunto: o que será que o Villaça veria neste texto que eu não estou vendo?”
Apesar de reconhecer os bons momentos de sua formação acadêmica, Corsaletti acredita que uma faculdade de Letras pode ajudar alguém a se tornar um leitor melhor, mas não um escritor melhor. “Escrever se aprende escrevendo, não discutindo teoria. Pelo contrário, acredito que o excesso de teoria pode atrapalhar um jovem escritor, pelo menos um jovem escritor como eu fui. Nesse sentido, sempre me defendi da USP. Digo isso sem arrogância, mas eu sentia, e isso não mudou com o passar dos anos, que tinha muito mais a aprender com as crônicas do Rubem Braga do que com os ensaios do Adorno, por exemplo. Eu quase não leio teoria. Basicamente leio ficção e poesia. Mais releio do que leio poesia. E tiro minhas próprias conclusões, faço comparações, penso e repenso meus critérios, às vezes bastante idiossincráticos.”
Para o autor, a imaginação é contraditória e obscura e, por isso mesmo, livre. Uma liberdade que tem pouco a ver com a academia. “Na hora de escrever, só consigo ser fiel à minha imaginação, e as leis da imaginação são parecidas com as leis do sonho. Você não pode controlar, dissecar, analisar um sonho, a não ser que você se chame Sigmund Freud, mas essa é outra conversa”, reflete Corsaletti. “O trabalho de um escritor e o de um acadêmico são diferentes. Para alguém com a minha personalidade, são inconciliáveis. Sei que para outras pessoas é possível lidar bem com as duas frentes. Tenho amigos que são poetas e críticos, poetas e professores universitários. Para mim, não dá. Não estou querendo dizer que sou um escritor intuitivo, um naïf etc. Não se trata disso. Eu trabalho muito, há 30 anos, para escrever da melhor maneira que posso. Mas é um trabalho de outra natureza em relação ao trabalho acadêmico.”
Trinta anos de trabalho que agora são coroados pelo reconhecimento do Prêmio Jabuti e todas as suas consequências. Além dos R$ 70 mil recebidos e uma viagem para participar da próxima Feira do Livro de Frankfurt, na Alemanha, os convites e as entrevistas – como esta ao Jornal da USP – já começaram a aparecer, e Engenheiro Fantasma chegou na segunda impressão. “Não sei ainda os números exatos das vendas, mas ganhei pelo menos algumas centenas de leitores, e ser lido é sem dúvida o maior dos prêmios. Além disso, estou com os bolsos cheios de dinheiro, coisa rara, então a cerveja de 2024 está garantida”, brinca o autor.
No prólogo que situa o leitor no complexo de autores e lugares de Engenheiro Fantasma, Corsaletti nos atiça, lembrando que ainda existiriam 144 dos sonetos de Bob Dylan perdidos em algum lugar. Ele mesmo já adianta, contudo, que não tem pretensões de fazer um volume 2 para a obra. Deixa a sugestão, por outro lado, de que algum poeta possa se dar ao trabalho, adicionando novos nós nessa estrutura em camadas de autoria. “Não seria bizarro. No universo dylanesco – que, curiosamente, é borgiano – tudo está em aberto, as máscaras são múltiplas, os pontos de vista são quase infinitos e, portanto, a autoria é uma construção mais ou menos coletiva. Ou seja, depois de Engenheiro Fantasma até mesmo o Robert Zimmerman (nome de batismo de Dylan) poderia escrever sonetos vestindo a pele de Bob Dylan”, provoca.
E por que Corsaletti, Dylan ou qualquer outro poeta se daria ao trabalho? No poema 43 do volume o autor sentencia: “o sábio é o imbecil que ficou mudo”. Nessa era de hiperinformação, redes sociais, influenciadores e um volume inédito na história de discursos sendo proferidos quase instantaneamente, qual é o papel da poesia? O que a torna singular nesse oceano de palavras onde o mutismo de que fala o verso do poema é praticamente proibido?
Corsaletti não sabe se tem uma boa resposta para essa pergunta, mas arrisca. “A poesia é o contrário disso tudo, dessa padronização radical e barulhenta dos discursos. Ela é sempre estranha, e desse estranhamento podem nascer coisas novas. Ou antigas verdades soterradas podem vir à tona. A ordem pode virar caos, e o caos, virar uma nova ordem. Mas o fato é que a poesia pode muito pouco diante de um mundo tão violento, complicado, injusto. Em todo caso, é a esse pouco que os poetas e os leitores de poesia se agarram e, com sorte, se salvam.”
No final das contas, é com uma citação do próprio Bob Dylan que pode surgir uma sugestão: poetry is to inspire. Mas inspirar quem? E para fazer o quê? “Essa já é outra história, mas gosto de imaginar um mundo de pessoas inspiradas, criando a si mesmas e criando coisas, muito diferente desse mundo moribundo em que nos arrastamos sem sentido e sem alegria”, arremata o escritor.
“O romance propõe vínculo mais íntimo entre escritor e leitor”
Vencedor do Prêmio Jabuti na categoria Escritor Estreante, Paulo Fehlauer – também formado pela USP – considera o gênero um “construtor de horizontes”
Extremo Oeste, romance que rendeu a Paulo Fehlauer o prêmio de Escritor Estreante do Jabuti 2023, conta sobre uma amizade na qual um dos pólos desapareceu, reunindo fotografias do próprio autor a palavras cuidadosamente esculpidas em sua fluidez. Leitura fácil de não se conseguir soltar, e prenhe de sentidos.
Apesar de ser um estreante no gênero, Fehlauer tem uma trajetória longa em outros campos, como a fotografia, as artes visuais, a produção audiovisual e o jornalismo, com trabalhos exibidos no Museu de Arte de São Paulo (Masp), no Museu de Arte Moderna (MAM), no Museu da Imagem e do Som (MIS) e no Instituto Moreira Salles, em São Paulo. Diante dessa multiplicidade de frentes, por que apostar e investir energias no romance, sobretudo nesta contemporaneidade inflada e anestesiada por discursos e narrativas incessantes?
“Ainda que o romance não tenha mais a centralidade que já teve na esfera pública, ele segue sendo um importante construtor de horizontes, mesmo que para um público minguante”, reflete Fehlauer. “Não vejo oposição entre o romance e as outras, inúmeras, formas narrativas, mas acredito que só o romance é capaz de intermediar um tipo particular de relação – direta e íntima, mesmo que distante – entre autor e leitor, uma relação que propõe a construção mútua e paulatina de um imaginário comum.”
Fehlauer concorda que a literatura é um todo amplo, com manifestações capazes de se espraiar vocalmente, como a poesia e o slam, mas vê a especificidade e relevância do romance hoje justamente na contraposição que faz ao déficit de atenção hegemônico em nosso tempo. “O romance propõe um vínculo de ordem mais íntima e prolongada, uma relação que demanda outro tempo e outro nível de dedicação – em vez do imediatismo das redes sociais, a mediação imaginativa do texto literário. Ganharíamos muito se lêssemos mais, é evidente, mas esse é um problema muito mais complexo, e cuja solução não cabe ao romance, especificamente, mas a toda a sociedade, caso se preocupe com a própria sobrevivência.”
Do jornalismo à literatura
A Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP foi onde Fehlauer se graduou em Jornalismo, em 2009. O ingresso na Universidade, em 2002, veio acompanhado da mudança de Palotina, pequena cidade no oeste do Paraná, para São Paulo, fazendo da USP sua casa na capital paulista. “Por não ter raízes na cidade, tive uma vivência muito ativa no campus, para além do currículo”, lembra o autor. “Fui integrante do Centro Acadêmico Lupe Cotrim da ECA, o que me permitiu entrar em contato com outras áreas da faculdade, e estagiei tanto no USP Online quanto na TV USP, experiências que me levaram a explorar não só o campus como a cidade de São Paulo.”
Essa vivência múltipla proporcionada pelo jornalismo foi uma das responsáveis por moldar o arco de interesses que levou Fehlauer à escrita de Extremo Oeste. Seu contato com a literatura e a fotografia – linguagens que se complementam no romance – também veio das aulas frequentadas. À graduação somaram-se um mestrado em Estudos Literários na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e um doutorado em andamento em Teoria e História Literária na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Do jornalismo à literatura, Fehlauer vê um percurso pessoal tortuoso. “A literatura me acompanha desde pequeno, mas, apesar de sempre ter gostado de escrever, minha relação com o jornalismo acabou enveredando inicialmente para o lado da fotografia.” Concluída a graduação, Fehlauer trabalhou como fotojornalista na Folha de S. Paulo e colaborou com outros veículos até se consolidar como membro do Coletivo Garapa, onde passou a explorar diversas formas narrativas, aproximando-se do cinema e das artes visuais e mantendo diálogos com a fotografia documental e o documentário.
“Essa liberdade de esfumaçar fronteiras, típica do campo das artes, despertou novamente em mim o interesse pelo texto literário, ainda em diálogo com a fotografia e com as noções de ‘documental’ e de ‘histórico’, também caras ao jornalismo. Em resumo, posso dizer que o jornalismo sempre esteve presente na minha trajetória, mesmo quando eu não o exercia diretamente”, explica. “O meu interesse pelo diálogo entre o texto e a imagem nasce dessa experiência liminar, sem lugar definido, tanto que se transformou em tema de pesquisa no mestrado e no doutorado.”
Para Fehlauer, escrita jornalística e literária podem sempre estar próximas. “O jornalismo é um campo muito amplo e expansivo, aglutinador, assim como a literatura, e abarca inúmeras formas de expressão. Mesmo nos temas mais duros do cotidiano de uma redação, por exemplo, por vezes basta um detalhe, uma escolha inesperada de palavras, para que outra camada de diálogo se estabeleça entre o jornalista e o leitor”, reflete.
Mais premiados
Além de Corsaletti e Fehlauer, outros membros da comunidade uspiana foram premiados na 65a edição do Jabuti. Lilia Moritz Schwarcz, professora da FFLCH, recebeu o prêmio de Melhor Livro Juvenil por Óculos de Cor: Ver e Não Enxergar. Marcelo D’Salete, professor da Escola de Aplicação da Faculdade de Educação da USP, ganhou o prêmio de Melhor História em Quadrinhos com Mukanda Tiodora. Marcos Nobre, professor da Unicamp formado em Ciências Sociais pela FFLCH, foi agraciado na categoria Ciências Sociais com Limites da Democracia: de Junho de 2013 ao Governo Bolsonaro. Sergio Burgi, também formado em Ciências Sociais pela FFLCH, ganhou na categoria Artes com Walter Firmo: no Verbo do Silêncio a Síntese do Grito.