A tradição patriarcal se consolidava no mercado de trabalho, que admitia o negro sem mitigar as condições de desigualdade. Era a democracia que procurava manter os elementos do patriarcalismo colonial, tentando assegurar às elites o poder e a docilidade dos trabalhadores.“A democracia proposta por Freyre representava, acima de tudo, a adaptação da segregação típica da sociedade escravista construída no Brasil durante a colonização, e que se estendera até o fim do Império, para o regime republicano”, escreve Zullo.
O projeto de Florestan não poderia estar mais distante disso. Nada de convivência e confraternização entre senhores e escravos, patrões e empregados, dominantes e subalternos, um Estado de harmonia que precisava ser restaurado. Isso era um falseamento da história construído por Freyre, uma tentativa de congelar a descolonização.
“A realidade que ele denunciava era a de uma formação histórica fundamentada na segregação que resistia à mudança com unhas e dentes, o que a cada nova etapa histórica se adaptava com o intuito de autopreservação”, indica o autor.
Para Florestan, classe e raça se aproximam. A segregação racial permeia a vigência do regime de classes no Brasil. Os papéis criados durante o período colonial se desdobraram em uma sociedade de classes racial e socialmente segregada. Se para Freyre a modernização brasileira expressava um desgaste da democracia, que precisava ser restaurada, para Florestan simplesmente nunca houve algo que se assemelhasse à democracia no País. A entrada do Brasil no capitalismo dependente e no regime de classes não teria alterado os fundamentos antissociais de dominação.
“A dimensão escravista do senhor de terras não desapareceu por completo com a emergência do burguês, assim como a mercantilização do trabalhador no regime de classes não rompeu até o fim e até o fundo com o padrão de exploração do trabalho escravo”, escreve Zullo.
Assim, não era a aliança entre proletários e a burguesia “nacional” e “progressista” que deveria estar na pauta dos trabalhadores, conforme propunha a posição nacional-desenvolvimentista em voga na época, mas sim uma revolução em moldes comunistas. E, ao mesmo tempo, era preciso considerar o negro como pedra angular do processo revolucionário. “A revolução brasileira de Florestan necessariamente requeria o aprofundamento da educação popular antirracista, inclusive no intuito de educar o movimento sindical, e a sua integração a uma agenda anti-imperialista, o que fatalmente a levaria a posturas anticapitalistas e democráticas”, pontua o pesquisador.
De volta à revista. Epílogo. Há um Brasil que afirma, enfim, sua complexidade – nas ruas, nas universidades e nos livros. Corações e mentes em disputa, nas diferenças de que somos feitos, como diz o título do Editorial da revista. Diferenças que compõem uma democracia justamente quando são respeitadas de maneira integral, o que significa reconhecer as insuficiências ainda por resolver.
A escritura de uma casa própria na Vila da Vitória segue materialmente a argumentação de Florestan Fernandes, cujas palavras são irmãs dos apontamentos de Amanda e Isabel na defesa de uma formação crítica para os professores. Variações de uma estética pobre, que se detém na importância ruidosa do cotidiano. Estudos brasileiros, sem dúvida.